O "Cavalo de Tróia"
A liberdade de imprensa é, sem dúvida, um pilar fundamental da democracia, a voz vigilante que fiscaliza o poder e informa o cidadão.
No entanto, o seu exercício, quando desviado, pode metamorfosear-se num autêntico "Cavalo de Tróia", uma ameaça interna que corrói as fundações do sistema que a alberga e protege.
Em vez de se focar nos grandes escândalos globais ou nas violações evidentes dos direitos humanos em regimes fechados, parte da imprensa nas democracias tende a hipertrofiar as falhas, os erros e os deslizes dos seus próprios governos. Criam-se narrativas de crise perpétua e instabilidade, castigando as lideranças democraticamente eleitas com um escrutínio obsessivo e muitas vezes desproporcional.
A liberdade, usada como arma, pode levar a um ciclo vicioso de desconfiança generalizada.
Cada passo em falso, cada desvio ético, é amplificado ao máximo, descredibilizando as instituições e fomentando o cinismo político.
Este foco quase exclusivo nas imperfeições internas transforma a vigilância em flagelação diária, minando a confiança na própria capacidade da democracia de resolver os seus problemas.
Simultaneamente, o paradoxo atinge o seu auge na forma como esta mesma imprensa, tão implacável com as suas democracias, demonstra uma notável complacência ou, pior, um silêncio ensurdecedor perante as atrocidades cometidas em ditaduras.
Os crimes de regimes autoritários, que reprimem brutalmente a oposição, censuram e prendem jornalistas e violam direitos humanos, são frequentemente minimamente cobertos ou relegados a notas de rodapé.
O medo, as dificuldades de acesso e as pressões geopolíticas contribuem para este duplo padrão, mas o resultado é catastrófico: as democracias são enfraquecidas pela autocrítica excessiva, enquanto os ditadores prosperam sob o manto de uma aparente normalidade ou irrelevância noticiosa.
Assim, o "Cavalo de Tróia" revela-se: sob o pretexto da liberdade, a imprensa arrisca-se a ser o agente involuntário da sua própria destruição, exaurindo a legitimidade democrática e, por contraste, legitimando o silêncio e a opacidade dos regimes mais repressivos.
É um perigo que exige uma profunda reflexão sobre a responsabilidade e o equilíbrio na prática do jornalismo livre.
English
The "Trojan Horse"
Freedom of the press is undoubtedly a fundamental pillar of democracy, the watchful voice that monitors power and informs citizens. However, its exercise, when misused, can metamorphose into a veritable "Trojan Horse," an internal threat that corrodes the foundations of the system that shelters and protects it.
Instead of focusing on major global scandals or obvious human rights violations in closed regimes, parts of the press in democracies tend to exaggerate the failures, errors, and lapses of their own governments. Narratives of perpetual crisis and instability are created, punishing democratically elected leaders with obsessive and often disproportionate scrutiny.
Freedom, used as a weapon, can lead to a vicious cycle of widespread distrust. Every misstep, every ethical lapse, is magnified to the maximum, discrediting institutions and fostering political cynicism. This almost exclusive focus on internal imperfections transforms surveillance into daily punishment, undermining confidence in democracy's own ability to solve its problems.
At the same time, the paradox reaches its peak in the way this same press, so ruthless with its democracies, demonstrates remarkable complacency or, worse, a deafening silence in the face of atrocities committed by dictatorships. The crimes of authoritarian regimes, which brutally repress the opposition, censor and imprison journalists, and violate human rights, are often barely covered or relegated to footnotes.
Fear, limited access, and geopolitical pressures contribute to this double standard, but the result is catastrophic: democracies are weakened by excessive self-criticism, while dictators thrive under the cloak of apparent normality or newsworthiness.
Thus, the "Trojan Horse" reveals itself: under the pretext of freedom, the press risks becoming the unwitting agent of its own destruction, undermining democratic legitimacy and, by contrast, legitimizing the silence and opacity of the most repressive regimes.
It is a danger that demands profound reflection on responsibility and balance in the practice of free journalism.